Da sobrevivência extrema à inovação: a tolerância à dessecação abre caminhos para saúde, agricultura e tecnologia

Imagine retirar quase toda a água de uma planta ou de um tardígrado e, depois de anos, vê-los voltar à vida. Essa façanha biológica, detalhada em um estudo na Nature Communications, promete revolucionar saúde, agricultura e tecnologia.

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Selaginella lepidophylla, a planta da ressurreição, revive após secar quase completamente.

Quando plantas ressuscitam depois de parecerem mortas ou pequenos invertebrados despertam após anos secos como poeira, estamos diante de algo que beira a ficção científica: a tolerância à dessecação. O tema ganhou novo fôlego com o artigo Life on the dry side, publicado na Nature Communications por pesquisadores da University of Illinois, San Francisco State University, University of Missouri e Michigan State University.

Eles reuniram, pela primeira vez, conhecimentos dispersos sobre organismos capazes de sobreviver quase sem água, oferecendo um roteiro para que diferentes laboratórios falem a mesma língua.

A relevância vai além da curiosidade biológica. Entender como moléculas, células e organismos inteiros entram em “animação suspensa” pode inspirar vacinas que dispensam refrigeração, sementes que resistem à seca e materiais inteligentes. Contudo, a pesquisa ainda é fragmentada: botânicos focam em plantas, zoólogos em tardígrados, engenheiros em biomateriais.

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Os tardígrados são invertebrados microscópicos capazes de sobreviver à dessecação total, voltando à vida quando reidratados.

O novo estudo propõe padronizar conceitos, métodos e dados para desbloquear aplicações que respondam a desafios como insegurança alimentar e logística de medicamentos em regiões quentes.

Da floresta úmida ao laboratório seco

Os autores mostram que o fenômeno surgiu várias vezes ao longo da evolução: de bactérias em desertos salinos a musgos de alta montanha. Mas a distribuição não segue apenas o mapa climático. Há espécies tolerantes vivendo em troncos úmidos de florestas tropicais, porque seus micro-habitats secam rapidamente ao sol. Ao comparar parentes tolerantes e sensíveis, os cientistas identificam pistas sobre genes e rotas metabólicas que se “reaproveitam” em fases específicas, como sementes ou ovos.

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Nos­toc commune é uma cianobactéria que forma colônias gelatinosas e pode sobreviver seca por longos períodos, reativando-se com a umidade.

O estudo também ressalta uma lacuna: animais e microrganismos recebem menos atenção que plantas. Protocolos detalhados para secar e reidratar nematódeos ou algas ainda são raros, o que dificulta testar hipóteses de forma comparável. Padronizar essas rotinas, dizem os autores, é o primeiro o para reunir resultados numa base de dados global, e, enfim, descobrir se existe um “código genético mínimo” da tolerância à dessecação.

A caixa de ferramentas microscópica

Durante a secagem, organismos tolerantes ativam uma verdadeira maleta de sobrevivência:

  • Açúcares como trealose e rafinose formam “vidros” internos que travam moléculas no lugar.
  • Proteínas LEA e HSP funcionam como embrulhos flexíveis, evitando o colapso de enzimas e membranas.
  • Pigmentos fotoprotetores dissipam radiação quando folhas se encolhem ao sol.
  • Mudanças no citoesqueleto permitem que células encolham sem romper.
  • Genes de reparo de DNA entram em ação assim que a água volta a circular.

Apesar de parecer uma coreografia complexa, os autores defendem que muitos desses itens já existem em organismos sensíveis, o segredo está em quando e quanto cada peça é produzida. Por isso, comparar curvas de hidratação, temperatura e luz entre espécies pode revelar os “botões de volume” moleculares que definem quem vive ou morre ao secar.

Por que isso importa para o futuro?

Na medicina, fórmulas inspiradas em açúcar vítreo prometem estabilizar anticorpos e vacinas de mRNA sem cadeia de frio, reduzindo custos e perdas em regiões tropicais. Na agricultura, micróbios associados a plantas ressuscitantes podem virar biofertilizantes que protegem raízes em períodos de estiagem.

E na indústria de materiais, polímeros que imitam proteínas desidratadas poderiam levar a sensores que am grandes variações de umidade.

Contudo, os autores lembram que inovação sem inclusão pode gerar novas desigualdades. Muitos dos organismos-chave estudados vivem em países do Sul Global, onde o o a tecnologias como sequenciadores genéticos ou microscópios avançados ainda é limitado.

Por isso, o estudo propõe que os dados gerados sejam bem organizados, fáceis de encontrar, íveis a outros pesquisadores, compatíveis entre diferentes sistemas e reutilizáveis para novas descobertas.

Referência da notícia

Life on the dry side: a roap to understanding desiccation tolerance and accelerating translational applications. 6 de abril, 2025. Marks, R.A., Ekwealor, J.T.B., Artur, M.A.S. et al.